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SEMINTENDES

Lendo, vê Semintendes...

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SEMINTENDES

19
Set06

Aos Companheiros de Viagem

lamire
 
Tantos rios correram, ora caudalosos,
Ora claros fios de água por entre areias...
Tantos de nós nessas águas alheias
Afogámos as sedes dos dias calorosos...
 
Tantos rios desceram de montes alterosos,
Alagando campos, cidades e aldeias...
Tantos rios encheram as nossas veias
E desaguaram, além, nos mares silenciosos...
 
Tantos rios, tantos mares percorremos
Em barcos sem velas, sem leme e sem remos,
Aventureiros sem fé e sem ventura...
 
Tantos rios onde nos afogámos...
Tantas praias a que nunca aportámos...
Tanta inquietação... tanta amargura...
--------
José Maria Pires, in Solilóquios, 2006
consulte páginas pessoais em www.exalunosdafigueira.com
05
Set06

O CÓNEGO DR MANUEL PAULO

lamire

Quem de Coimbra até aos anos 80 e pico se não lembra dele?

O início da sua 'transfiguração` apanhou-o subitamente no refeitório do Seminário.

A sua estatura vertical, a cicatriz na cara fruto de séria doença que, na juventude, lhe bateu à porta tornavam-no, à primeira vista, um homem temível.Quem não se lembra disso quando, às quintas depois do almoço, enfrentava o ar sério do sr vice-reitor, junto à porta do refeitório dos padres, para pedir autorização de saída à baixa,tendo de alegar um motivo razoável, embora por vezes trapaceante? O seu acenar mudo e iterativo com a cabeça de cima para baixo ou da esquerda para a direita eram, respectivamente, a resposta afirmativa ou negativa ao solicitado.

Mas, na realidade, ele não era esse homem temível.Era um homem de coração doce e sábio, compreensivo e amigo. De rara inteligência e cultura; letrado e literato; de sábia e fina ironia não ofensiva que fazia rir a fraldas desfraldadas.

 

Quem não se lembra daquela sessão de abertura solene do Seminário em que, antecedendo o recursivo ´sursum corda` do monsenhor Abílio Costa que representava o sr Arcebispo, ausente em Roma para a 1ª sessão do Vaticano II,o Manuel Paulo, no relatório das actividades do Seminário se sai mais ou menos neste estilo: «E na Quinta do Seminário, onde ainda há pouco vicejavam umas raras e verdes couves galegas(riso geral da assistência)...

começa agora a erguer-se o Colégio de S. Teotónio»?

 

Ou, em idêntica situação, a sua coragem quando, na presença de D. Francisco Rendeiro, face aos novos problemas eclesiais emergentes do Vaticano II, ousa afirmar peremptoriamente, com o "ex cathedra" que a sua ampla visão eclesiológiga lhe conferia, a 'bomba`:«UMA IGREJA QUE, POR RAZÕES DE ORDEM DISCIPLINAR (o celibato), DEIXE OS SEUS FILHOS SEM PÃO NÃO É UMA IGREJA QUE É MÃE, MAS UMA IGREJA MADRASTA.» Era o começo dos tempos do pós-tridentino (infelizmente, passageira primavera garroteada quase à nascença), em que a crise de vocações e a raridade das ordenações começavam a afirmar-se. Isto ter-lhe-à custado a sua demissão do cargo de Reitor.

 

Exímio latinista e poliglota, com que osmose nos ensinava a saborear o "accentum" e o poder conciso das estruturas linguísticas latinas! Ou com que visão de fé, já esclarecida pelas novas luzes do Vaticano II, nos transmitia a Teologia Fundamental e a Eclesiologia!

 

Gostava também do bem-estar dos seus seminaristas.Quem não se lembra daquele toque de campainha, às tristes, em todas as prefeituras, com ordem de marcha para a sala dos azulejos? Aqui concentrados, o problema era o abuso do primeiro uso de calções num jogo de futebol. Tinha sido um escândalo! O Cónego Brito Cardoso, no terraço da CASA NOVA, digerindo ou em congestão do almoço face ao evento, exclamava aos quatro ventos: «Ó Amado, Ó Paulo, Ó Póvoa ... vinde ver, vinde ver!!!» De maneiras que o Sr. Reitor mais não teve que, após averiguações públicas fazer a seguinte declaração:«Os meus amigos puseram-me perante o facto

consumado.(..) Portanto, estão suspensos os calções, até novas ordens.» Claro que os ventos iam favoráveis, pois a transmissão dos Jogos do Benfica na taça dos Campeões Europeus, na quase incipiente TV portuguesa, que o Seminário já autorizava a ver, mostravam como é que se jogava equipado a rigor, sem batinas nem amplas calças pretas. E passados não muitos dias, às tristes,novamente a campainha encaminhava para a dita sala para se ouvir a sentença abonatória para os calções.

E era vê-lo, quase sempre na sua varanda, comprazendo-se com os seus semis a praticar desporto. Chegava mesmo a chamar a atenção àqueles que, normalmente, via afastados desta actividade libertadora de tensões (e tentações).

Fernando Neves [f_neves@mail.pt]

 

05
Set06

O Cónego Dr. Brito Cardoso

lamire

Hoje mais que nonagenário, continua ainda, na sua provecta idade, dedicado à investigação e à escrita que encetou ainda jovem com, entre outras publicações, os Evangelhos Sinópticos e a Sebenta de Sagrada Escritura.

Era um professor muito culto e de bom coração, de acentuada e sopranista pronúncia serrana, com alguns episódios que o tornaram inesquecível para os seus alunos.

Leccionava, além de Sagrada Escritura, grego clássico e bíblico e ainda hebreu, tudo línguas em que, enfim, a malta se via grega, mas em que ele era sábio mestre. Quem não se lembra do “cai caricacós”, do “smerdaléon autê” e de tantas outras sonoridades que para sempre ficaram gravadas na nossa memória?

As aulas de grego clássico eram na sala do piano, com porta, para o laboratório de física, junto ao refeitório dos padres. De configuração escolástica, sobre um alto estrado ficava a mesa do professor e, cá em baixo, as mesas de tábua única com os respectivos bancos corridos cujos assentos eram de levantar e baixar.

Ora, vistas assim as coisas à distância, compreende-se que o Cónego Brito Cardoso, olhando do alto da sua cátedra, somente visse ´em picado` as cabeleiras e a negridão das nossas capas e batinas, pois que os rostos esses ficavam, estrategicamente, inclinados para os grafemas do alfabeto grego que constituíam as palavras do texto do manual.

Então, porque não usava, como o cónego Amado, o malfadado saco das bolinhas da sorte, com divisória discriminatória para aparente casual castigo de algum comportamento indevido, e porque não se dedicava muito a gastar a memória com os nossos nomes, o Dr. Brito Cardoso chamava o aluno simplesmente com o seu “vamozz, filhinho”, que não obtinha resposta. Tinha de repetir o ´vamozz` até que algum desgraçado se condoesse ou alguém que tivesse escrito a tradução nas entrelinhas do texto grego levantasse a cabeça, dizendo:

- Eu, sr Doutor?

- Sim, filhinho, vamozz!

Esta palavra era um dos seus bordões fáticos que, enquanto o colega respondia à chamada, os outros se entretinham a contar com riscos na sebenta.

 

Quanto às aulas de Sagrada Escritura, além do fundamental que nos ensinou com profundidade, recordo também alguns momentos de boa disposição.

Certo dia, fazendo a exegese do texto sagrado, pedagogicamente, lança a pergunta retórica:

-«E o que dizz o evangelizzta?

Ora o João Evangelista, vulgo Stá Pinta, estaria a navegar noutros mundos.

Mas a interpelação “evangelizzta” alvoroçou-lhe os martelos do tímpano.

Como era rapaz inteligente e de discurso fácil, não se dando por achado, enceta o diálogo:

- O Sr Doutor podia repetir a pergunta, se faz favor!...

- Vamozz, filhinho, é o evangelizzta, mas o do evangelho - respondeu o bondoso professor.

 

Na exegese do episódio da expulsão dos vendilhões do templo aparecia o termo gazofilácio. Corridos os alunos um a um, não passava pela cabeça de nenhum a mínima ideia do significado de tão estranha palavra.

Explicado o termo e continuando a sua prelecção, chegou ao versículo referente às pombas onde Jesus diz: «Tirai isto daqui!»

- «Vamozz, e proque que dizz Jesuzz tirai izzto daqui?» Corridos novamente os alunos, já estes se aventuraram mais em mostrar algum conhecimento.

- «Porque as pombas são símbolo da paz» - aventava um

- «Porque a pomba representa o Espírito Santo» - respondia outro.

E por aí adiante, sem que nenhuma resposta satisfizesse o professor.

- «Vamozz, cambada de burinhozz. “Tirai izzto daqui” ´proque` azz pombazz ezztavam dentro de gaiolazz e não podiam voar.

 

Em qualquer matéria de dúbia discussão, lá vinha a sua máxima preventiva de

espalhanço:

- «Vamozz, filhinhozz, nezzte assunto, é necessário ezztar como o Senhor dozz Paçozz: um pé adiante e outro atrázz, para não cair.» Bom homem, sem dúvida. Que Deus o conserve ainda por muitos e bons anos, activo nas suas pesquisas.

Fernando Neves [f_neves@mail.pt]

 

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