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Quem de Coimbra até aos anos 80 e pico se não lembra dele?
O início da sua 'transfiguração` apanhou-o subitamente no refeitório do Seminário.
A sua estatura vertical, a cicatriz na cara fruto de séria doença que, na juventude, lhe bateu à porta tornavam-no, à primeira vista, um homem temível.Quem não se lembra disso quando, às quintas depois do almoço, enfrentava o ar sério do sr vice-reitor, junto à porta do refeitório dos padres, para pedir autorização de saída à baixa,tendo de alegar um motivo razoável, embora por vezes trapaceante? O seu acenar mudo e iterativo com a cabeça de cima para baixo ou da esquerda para a direita eram, respectivamente, a resposta afirmativa ou negativa ao solicitado.
Mas, na realidade, ele não era esse homem temível.Era um homem de coração doce e sábio, compreensivo e amigo. De rara inteligência e cultura; letrado e literato; de sábia e fina ironia não ofensiva que fazia rir a fraldas desfraldadas.
Quem não se lembra daquela sessão de abertura solene do Seminário em que, antecedendo o recursivo ´sursum corda` do monsenhor Abílio Costa que representava o sr Arcebispo, ausente em Roma para a 1ª sessão do Vaticano II,o Manuel Paulo, no relatório das actividades do Seminário se sai mais ou menos neste estilo: «E na Quinta do Seminário, onde ainda há pouco vicejavam umas raras e verdes couves galegas(riso geral da assistência)...
começa agora a erguer-se o Colégio de S. Teotónio»?
Ou, em idêntica situação, a sua coragem quando, na presença de D. Francisco Rendeiro, face aos novos problemas eclesiais emergentes do Vaticano II, ousa afirmar peremptoriamente, com o "ex cathedra" que a sua ampla visão eclesiológiga lhe conferia, a 'bomba`:«UMA IGREJA QUE, POR RAZÕES DE ORDEM DISCIPLINAR (o celibato), DEIXE OS SEUS FILHOS SEM PÃO NÃO É UMA IGREJA QUE É MÃE, MAS UMA IGREJA MADRASTA.» Era o começo dos tempos do pós-tridentino (infelizmente, passageira primavera garroteada quase à nascença), em que a crise de vocações e a raridade das ordenações começavam a afirmar-se. Isto ter-lhe-à custado a sua demissão do cargo de Reitor.
Exímio latinista e poliglota, com que osmose nos ensinava a saborear o "accentum" e o poder conciso das estruturas linguísticas latinas! Ou com que visão de fé, já esclarecida pelas novas luzes do Vaticano II, nos transmitia a Teologia Fundamental e a Eclesiologia!
Gostava também do bem-estar dos seus seminaristas.Quem não se lembra daquele toque de campainha, às tristes, em todas as prefeituras, com ordem de marcha para a sala dos azulejos? Aqui concentrados, o problema era o abuso do primeiro uso de calções num jogo de futebol. Tinha sido um escândalo! O Cónego Brito Cardoso, no terraço da CASA NOVA, digerindo ou em congestão do almoço face ao evento, exclamava aos quatro ventos: «Ó Amado, Ó Paulo, Ó Póvoa ... vinde ver, vinde ver!!!» De maneiras que o Sr. Reitor mais não teve que, após averiguações públicas fazer a seguinte declaração:«Os meus amigos puseram-me perante o facto
consumado.(..) Portanto, estão suspensos os calções, até novas ordens.» Claro que os ventos iam favoráveis, pois a transmissão dos Jogos do Benfica na taça dos Campeões Europeus, na quase incipiente TV portuguesa, que o Seminário já autorizava a ver, mostravam como é que se jogava equipado a rigor, sem batinas nem amplas calças pretas. E passados não muitos dias, às tristes,novamente a campainha encaminhava para a dita sala para se ouvir a sentença abonatória para os calções.
E era vê-lo, quase sempre na sua varanda, comprazendo-se com os seus semis a praticar desporto. Chegava mesmo a chamar a atenção àqueles que, normalmente, via afastados desta actividade libertadora de tensões (e tentações).
Fernando Neves [f_neves@mail.pt]
Hoje mais que nonagenário, continua ainda, na sua provecta idade, dedicado à investigação e à escrita que encetou ainda jovem com, entre outras publicações, os Evangelhos Sinópticos e a Sebenta de Sagrada Escritura.
Era um professor muito culto e de bom coração, de acentuada e sopranista pronúncia serrana, com alguns episódios que o tornaram inesquecível para os seus alunos.
Leccionava, além de Sagrada Escritura, grego clássico e bíblico e ainda hebreu, tudo línguas em que, enfim, a malta se via grega, mas em que ele era sábio mestre. Quem não se lembra do “cai caricacós”, do “smerdaléon autê” e de tantas outras sonoridades que para sempre ficaram gravadas na nossa memória?
As aulas de grego clássico eram na sala do piano, com porta, para o laboratório de física, junto ao refeitório dos padres. De configuração escolástica, sobre um alto estrado ficava a mesa do professor e, cá em baixo, as mesas de tábua única com os respectivos bancos corridos cujos assentos eram de levantar e baixar.
Ora, vistas assim as coisas à distância, compreende-se que o Cónego Brito Cardoso, olhando do alto da sua cátedra, somente visse ´em picado` as cabeleiras e a negridão das nossas capas e batinas, pois que os rostos esses ficavam, estrategicamente, inclinados para os grafemas do alfabeto grego que constituíam as palavras do texto do manual.
Então, porque não usava, como o cónego Amado, o malfadado saco das bolinhas da sorte, com divisória discriminatória para aparente casual castigo de algum comportamento indevido, e porque não se dedicava muito a gastar a memória com os nossos nomes, o Dr. Brito Cardoso chamava o aluno simplesmente com o seu “vamozz, filhinho”, que não obtinha resposta. Tinha de repetir o ´vamozz` até que algum desgraçado se condoesse ou alguém que tivesse escrito a tradução nas entrelinhas do texto grego levantasse a cabeça, dizendo:
- Eu, sr Doutor?
- Sim, filhinho, vamozz!
Esta palavra era um dos seus bordões fáticos que, enquanto o colega respondia à chamada, os outros se entretinham a contar com riscos na sebenta.
Quanto às aulas de Sagrada Escritura, além do fundamental que nos ensinou com profundidade, recordo também alguns momentos de boa disposição.
Certo dia, fazendo a exegese do texto sagrado, pedagogicamente, lança a pergunta retórica:
-«E o que dizz o evangelizzta?
Ora o João Evangelista, vulgo Stá Pinta, estaria a navegar noutros mundos.
Mas a interpelação “evangelizzta” alvoroçou-lhe os martelos do tímpano.
Como era rapaz inteligente e de discurso fácil, não se dando por achado, enceta o diálogo:
- O Sr Doutor podia repetir a pergunta, se faz favor!...
- Vamozz, filhinho, é o evangelizzta, mas o do evangelho - respondeu o bondoso professor.
Na exegese do episódio da expulsão dos vendilhões do templo aparecia o termo gazofilácio. Corridos os alunos um a um, não passava pela cabeça de nenhum a mínima ideia do significado de tão estranha palavra.
Explicado o termo e continuando a sua prelecção, chegou ao versículo referente às pombas onde Jesus diz: «Tirai isto daqui!»
- «Vamozz, e proque que dizz Jesuzz tirai izzto daqui?» Corridos novamente os alunos, já estes se aventuraram mais em mostrar algum conhecimento.
- «Porque as pombas são símbolo da paz» - aventava um
- «Porque a pomba representa o Espírito Santo» - respondia outro.
E por aí adiante, sem que nenhuma resposta satisfizesse o professor.
- «Vamozz, cambada de burinhozz. “Tirai izzto daqui” ´proque` azz pombazz ezztavam dentro de gaiolazz e não podiam voar.
Em qualquer matéria de dúbia discussão, lá vinha a sua máxima preventiva de
espalhanço:
- «Vamozz, filhinhozz, nezzte assunto, é necessário ezztar como o Senhor dozz Paçozz: um pé adiante e outro atrázz, para não cair.» Bom homem, sem dúvida. Que Deus o conserve ainda por muitos e bons anos, activo nas suas pesquisas.
Fernando Neves [f_neves@mail.pt]
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