Memórias de um tempo futuro
Quando recebi o telefonema do Zé Dias a convidar-me para fazer a apresentação deste seu livro Memórias de um Tempo Futuro, a minha resposta foi imediatamente afirmativa. O Zé Dias é alguém que eu conheço há muitos anos, desde os bons tempos da nossa juventude em que até jogámos futebol juntos, e é alguem por quem sempre tive e tenho uma admiração muito especial. Por isso e por tudo o mais que escuso de dizer porque me parece óbvio, eu só poderia aceitar este desafio.
Estas Memórias de um Tempo Futuro em boa hora editadas pela editorial Além Mar, são constituídas por quatro blocos temáticos e por um epílogo e ainda por uma breve apresentação do livro a cargo de Manuela Silva, que nos apresenta o Zé Dias como um lúcido profeta do nosso tempo.
Que o Zé Dias é um profeta do nosso tempo, todos o reconhecemos e aceitamos certamente, uma vez que a maior parte de nós acompanha a sua obra, lê as suas crónicas. E que o Zé é um homem lúcido também não temos dúvidas. Alías o étimo latino lucidu significa precisamente aquilo que o Zé Dias é nas prosas com que nos brinda: lúcido porque tem luz, lúcido porque brilha, lúcido porque é cintilante e lúcido ainda porque é claro nos seus juízos, nos seus raciocínios e na sua argumentação.
Embora o livro esteja dividido nos tais quatro blocos temáticos que já referi, gostaria no entanto de apresentrar a obra sem qualquer preocupação sequencial, optando antes por defender que a obra é o espelho de um homem de fé, o espelho dum homem atento à família, o espelho de um homem atento à Igreja e o espelho de um homem atento à sua cidade e atento ao Mundo.
Que o Zé Dias é um homem de fé todos o sabemos e não será por acaso que esta obra começa precisamente com este título: Aquilo em que acredito, uma síntese do Credo dos apóstolos. Também não será por acaso que o artigo seguinte se intitula Onde está o teu irmão?. É que o Zé, ao longo da sua vida, levou sempre muito a peito a conhecida frase evangélica “amarás ao Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua mente” mas sem esquecer que o segundo mandamento é semelhnte a este: “Amarás ao teu próximo como a ti mesmo” (Mt. 22,37 e 39), e sem esquecer também que “se alguém disser: eu amo a Deus, mas odiar o seu irmão, é mentiroso, pois quem não ama a seu irmão, ao qual vê, como pode amar a Deus, que não vê?” (1ª Carta de João, 4, 20).
Qualquer um de nós aceita facilmente que o Zé Dias se afirme como homem de fé, que coloca no mesmo plano este amor a Deus e este amor ao próximo. No entanto nem todos por vezes o entenderam assim e por causa disso mesmo ele sentiu-se obrigado a esclarecer as Razões (do seu) Compromisso. De facto em Março de 1995, o Zé publicou no Correio de Coimbra um dos textos mais fortes desta colectânea em que procurou precisamente justificar a sua coluna, alvo de crítica de alguns leitores. Torna-se dificil ( mas ao mesmo tempo talvez sejá fácil, passe a contradição ) adivinhar as críticas que o Zé recebeu. Mas o conjunto de citações bíblicas que apresenta nesse escrito fundamentam com clareza a radicalidade da proposta de Jesus Cristo, a mais libertadora das propostas que nos obriga à desinstalação permanente! “Sinto uma obrigação, uma violência interior que me obriga, quase como uma dor física, a ter de lutar por isso. E eu bem queria recusar: como eu gostaria de estar sossegadinho no meu canto, sem chatear ninguém!” (p.16).
Só um homem de uma fé muito profunda seria capaz de nos dar conta dos seus acidentes de percurso (tílulo do artigo de Março de 2006, p. 27) nesta estrada que o conduz à plenitude do reino de Deus. Sem qualquer complexo, mas escudado na sua fé, o Zé fala-nos dos seus graves problemas de saúde, invocando três palavras bíblicas: o exemplo de Job, a sábia carta de S. Paulo e o momento do Jardim das Oliveiras, momento inspirador supremo. E por isso declara: “…não pedi a Deus que me curasse, mas que me desse forças para aceitar sem revolta a sua vontade. A oração não tem de ser só petição nem uma tentativa de alterar a vontadce de Deus, menos ainda uma espécie de cunha que pode raiar o suborno.” (p 30).
Quen conhece o Zé, sabe também que ele é um homem que ama profundamente a sua família. Que fala dela com orgulho. Com carinho. Com uma admiração profunda. Por isso não nos podem espantar as referências feitas à Fátima, à Renata e ao David.
Como podia o Zé esconder a alegria de ser pai pela segunda vez, depois de onze anos de espera? Como podia o Zé calar a sua alegria perante aquele David, bocadinho de gente, fruto de uma gravidez difícil, que a Fátima suportou, certa de que o amor de Deus os queria brindar com mais este encargo e com esta alegria? (p.23).
Como podia o Zé calar a alegria da profissão de fé da Renata, apesar da invasão dos fotógrafos quase comparável à invasão dos bárbaros?(p.25)
Que o Zé é um homem atento à igreja só não vê quem não quer. Diria, em primeiro, que não é vulgar que alguém pense em reformar-se após vinte anos de serviço, para estar mais disponível para a família e para a Igreja. Mas o Zé fez isso. E a sua disponibilidade para servir a Igreja é de todos conhecida. Não vale a pena recordar aqui, até porque não seria capaz de o fazer com rigor, toda a colaboração que o Zé Dias tem prestado particularmente à Igreja Diocesana de Coimbra e à Igeja Portuguesa em geral.
Direi apenas que esta atenção à Igreja é bem vísivel na maior parte dos artigos com que nos brinda e por isso deixo apenas breves referências.
Em Outubro de 2002, 40 anos passados do Vaticano II o Zé interroga-se: “Realizar um Vaticano III? Concretizar o Vaticano II ainda cheio de virtualidades? O mais importante é que bispos, padres, religiosos e leigos queiramos uma Igreja capaz de responder aos desafios de hoje, estejamos disponíveis para testemunhar Jesus Cristo aqui e agora, estejamos abertos às exigências do espírito das bem–aventuranças, queiramos mudar de vida. Sem isto podem vir concílios, sínodos, planos pastorais que nada ou pouco mudará, porque a mudança tem de começar dentro de cada um dos que formam a igreja.” (p. 63).
Para o Zé Dias, uma Igreja que queira responder aos desafios de hoje não pode deixar de lado metade da humanidade. E por isso ele defende (cfr. P.124, Além–Mar, Jul.Ago. 2005) que é tempo de a Igreja olhar para a mulher doutra forma, dando-lhe o papel que ela merece em plena igualdade com o homem. Por isso, declara que é “ tempo de a metade da humanidade que precisa de ser salva comece por salvar a mulher, assumindo que ela tem de ter os mesmos direitos e deveres e acabando com legislações cívicas ou religiosas que só a mantêm num estado de menoridade e de incapacidade de nos salvar a todos.” (p.124)
Uma Igreja capaz de responder aos desafios de hoje tem de ser uma Igreja com cada vez mais preocupações de carácter ecuménico e com a dignidade da pessoa humana. E daí a evocação que o Zé faz em 2005 de duas encíclicas de João Paulo II a Redemptor Hominis e a Christifideles Laici (p.68).
Disse anteriormente, que o Zé é também o espelho de um homemn atento à sua cidade. Em Junho de 1989, a caminho da maternidade, por altura do nascimento do David, o Zé dá conta dos efeitos da construção desenfreada que não foi capaz de construir um passeio panorâmico numa zona da cidade onde estava projectado, provavelmente porque o poder do cifrão falou muito mais alto do que o poder estético e contemplativo. (p. 24). O mais grave, conclui o Zé, não é o império do betão. O mais grave é que nós os cidadãos desta Coimbra ficamos de braços cruzados perante estes bárbaros insensíveis. Ficámos na altura e ficamos hoje, porque a insensibilidade a este nível continua e o tal império do betão continua a sobrepôr-se ao império dos espaços verdes.
Mas o Zé Dias é sobretudo um cidadão atento ao nosso mundo, que procura fazer a exegese dos acontecimentos e decifrar os sinais, procurando sempre encontar aquela necessária réstea de esperança cristã, inspirado quer nos ensinamentos bíblicos quer nos documentos conciliares ou nas encíclicas papais.
Cristão comprometido com o seu tempo e no seu tempo, o Zé não passa à margem dos acontecimentos. E por isso fala dessa vergonha universal que foi o holocausto nazi a propósito dos 50 anos do Estado de Israel. Fala de uma sociedade em crescente relativismo ético que de repente acorda acossada com o fenómeno Le Pen, ou duma França que questiona o seu “Modelo Social Humano” por causa dos distúrbios juvenis em Paris. Fala da necessidade de continuarmos a lutar prioritariamente pela paz a propósito da invasão do Kuawait pelo Iraque. Fala duma “Solidariedade por Impulsos” (p. 113) que procurou responder às ondas assassinas do tsunami que varreu o Sudeste Asiático em 26 de Dezembro de 2004.
Cidadão atento, O Zé é sobretudo um cidadão inconformado, para quem a pobreza, esse crime contra a humanidade (p.135), não é inevitável (p.101) uma vez que “a Terra foi dada a todos e não apenas a alguns”. (p.104) Daí que se interrogue, tal como o fizera João Paulo II: “ Como é possível que ainda haja, no nosso tempo, quem morra de fome, quem esteja condenado ao analfabetismo, quem viva privado dos cuidaos médicos mais elementares, quem não tenha uma casa onde abrigar-se?” (Novo Millennio Ineunte, p. 104). Mas além das interrogações, o Zé Dias lança algumas propostas concretas, novas atitudes relativamente à pobreza. E assim, convida-nos, em primeiro lugar , a passar da indiferença à compaixão; depois convida-nos a passar da culpabilização do pobre para a responsabilização da sociedade e finalmente sugere que passemos da lógica da esmola à lógica do direito. (Cfr. 133-136; Crime Contra a Humanidade, Alé–Mar, Jan. 2006).
Profeta lúcido, o Zé Dias denuncia as “Novas Escravaturas” (p.109) que ainda hoje roubam a liberdade a milhões de homens, mulheres e crianças, vítimas de tráfico para exploração pelo trabalho escravizado ou vítimas de exploração sexual e declara que não entende (e nós também não!) como é que “ a humanidade, que se tornou capaz de colocar homens na Lua e de enviar mensagens para lá do sistema solar, tem ainda tanta dificuldade para chegar ao coração de cada pessoa”. (p.112)
Profeta e cidadão empenhado e comprometido o Zé Dias celebra os 30 anos da Revolução de Abril desejando que a nossa sociedade retome os seus ideias libertadores: a democracia, a paz social e a paz entre todos os povos, a igualdade da mulher, o apoio persistente e digno aos colectivos marginalizados e excluídos, uma melhor redistribuição da riqueza nacional, uma melhor saúde, um melhor ensino, uma melhor justiça para todos. (Cumprir Abril, p.154).
Qualquer um de nós poderá com certeza subscrever estes desejos do Zé Dias. Mas não será por acaso que ele escolheu para epílogo da sua obra “Imaginação Precisa-se”(p.161). De facto mais do que nunca a construção dos novos céus e da nova terra nos exige cada vez mais essa imaginação.
Não sei se consegui motivar-vos para a leitura desta obra que é um permanente apelo e um constante desafio. Mas eu creio que o Zé, como o poeta, têm razão: tenhamos saudades do futuro!
J. Vieira Lourenço
Seminário dos Combonianos, Coimbra, 12 de Dezembro, 2006